abr.13: Memórias do Cárcere, capítulo XXX
Publicado em 01 de abril de 2013
Certa manhã os
paranaenses foram chamados à secretaria e voltaram num ruidoso
contentamento: no dia seguinte, com dois rapazes do nordeste e alguns
ladrões e vagabundos, deixariam a Colônia. Essa notícia me causou viva
inquietação. O nosso grupo se desconjuntava, segundo o hábito que me
parecia regra na cadeia. Uma parte ficava ali; outra se juntava a
pessoas desconhecidas, ia formar em lugares diferentes novos aglomerados
instáveis. No Pavilhão dos Primários qualquer boato a respeito de
mudança nos tirava o apetite. Agora aqueles homens estavam alegres em
excesso: provavelmente não seriam soltos, mas a transferência devia ter
para eles quase o valor de uma libertação.
Felicitei-os, procurando sentir prazer
com o afastamento incompreensível. Achava-me na verdade cheio de inveja e
despeito. Resolução estúpida. Van der Linden e Mário Paiva, meus
companheiros no porão do Manaus, cuspiam sangue, coitados, precisavam
realmente sair. Mas Zoppo, Cabezon, Petrosky, homens fortes, podiam
resistir mais alguns dias. Petrosky era um gigante. Ao vê-lo arrumar a
bagagem, vagaroso, pesado, com jeito de boi, achava-me em completo
desânimo. Impossível agüentar-me. A agonia do malandro cafuzo
importunava-me. À chegada, arrastava-me a custo; olhando-me a cara, o
tenente Bicicleta me dispensara do trabalho O meu fim estava próximo,
com certeza. E abandonavam-me naquele inferno.
Passei o dia remoendo idéias lúgubres.
Iam enterrar-me ali. Um pacote leve, alguns ossos envoltos nas duas
bandas de lençol tintas de vômitos sangrentos. Embrulho imundo, anônimo,
em cima de uma tábua. Enfim não pretendiam corrigir-nos: queriam apenas
matar-nos, dissera o guarda vesgo na primeira noite, procurando
esconder o braço pequeno, atrofiado. – “Quem tem protetor fica lá fora.
Os que chegam aqui vêm morrer. Todos iguais.” Sem dúvida. O malandro
cafuzo, Domício Fernandes, revolucionário de Natal, assassinados,
iguais, sem dúvida. Todos iguais. Ia acabar-me assim. Natural. Se
pudesse entrar na fila, sentar-me no refeitório ignóbil, ingerir pedaços
da bóia infame, talvez conseguisse estender um pouco a vida hesitante.
Impossível. Cubano voltaria a agarrar-se comigo, em luta física, para
obrigar-me a comer. Os bons propósitos dele se perderiam.
Esses pensamentos desagradáveis foram
interrompidos à tarde. Chamaram-me à grade, mandaram que me apresentasse
ao diretor. Que diabo seria? Essa gente nunca me falara. Vesti a roupa
de casimira por cima do pijama e, sem gravata, julguei-me decente para
falar à autoridade. Abriu-se a porta, saí em companhia da força,
atravessei o pátio, fui levado à casa onde me haviam espoliado antes de
me rasparem a cabeça.
Entrei numa saleta, vi sentado a uma
banca um homem de rosto fino, duro, silhueta recortada em lâmina de
faca. Logo reconheci o médico, o diretor suplente que viajara conosco na
lancha, entre senhoras acomodadas em cadeiras de vime. Avancei,
detive-me a pequena distância da mesa. O sujeito de fisionomia cortante,
em silêncio, estendeu-me um papel. Li. Era um telegrama chamando-me com
urgência ao Rio.
- Está bem. Quando viajo?
- Amanhã, com os outros.
- Está bem.
Ia retirar-me, atordoado: não esperava
tal coisa. Porque não me haviam juntado aos outros? Decisão de última
hora, certamente. Dirigi-me à porta, uma lembrança deteve-me: recuei,
murmurei à toa, sem escolher palavras:
- Ó doutor, quer fazer-me o obséquio de mandar procurar uma carteira que me furtaram aí na secretaria?
O sujeito olhou-me severo e respondeu firme:
- Aqui não se furta.
- Santo Deus! tornei. Aqui não se faz
outra coisa. Todos nós somos ladrões. Porque é que estamos na Colônia
Correcional? Porque somos ladrões, naturalmente. Pelo menos é esta a
opinião do governo. O senhor ignora que lá dentro usamos os casacos pelo
avesso, para os nossos amigos não nos meterem as mãos nos bolsos?
Larguei isso com um sorrisinho mau,
impertinente, repisando frases. O objeto perdido não me faria grande
falta, nem uma vez pensara em reavê-lo. Mas, feita a reclamação,
pegava-me a ela, por ver que estava causando aborrecimento ao
funcionário antipático. Insisti, ele mandou chamar o rapaz da
secretaria.
- É isto, expliquei. Uma carteira que os
senhores me furtaram no dia da chegada. Estão aqui o porta-níqueis e o
cinto, com monogramas. Há na carteira um monograma igual.
- O senhor tem recibo? perguntou o sem-vergonha.
- Não, homem. Você já viu ladrão dar recibo do que furta?
- Ah! Não fui eu.
- Então foi um colega seu. Vocês todos se entendem.
O sujeito negava a pés juntos. Insisti
na reclamação por teimosia, só para chatear o médico. Certamente não me
iriam atender: limitava-me a acusar sem provas, e era impossível
identificar o culpado na multidão confusa. No caso dele, meter-me-ia nas
encolhas, evidentemente; qualquer indivíduo sensato faria o mesmo. Não
me passava a idéia de que ele fosse denunciar-me. E continuava a
segurar-me a um direito vago, indemonstrável, enquanto a frase do guarda
zarolho me feria a lembrança: – “Aqui não há direito”. O homem de cara
metálica esgotava a paciência, com certeza; necessário decidir-me a
largar o caso enfadonho, que nenhuma vantagem me podia trazer. Depois de
viver naquela miséria, sem alimentos, sem banho, encurralado como
bicho, sugado por mosquitos e piolhos, resguardando-me com trapos sujos
de hemoptises, ocupar-me assim de um prejuízo insignificante era
absurdo. Ao entrar na Casa de Detenção, agarrara-me a um frasco de iodo
quase vazio que me queriam tomar, defendera-o com vigor, mostrando uma
unha já cicatrizada; conseguira salvá-lo e jogara-o no lixo, pois não me
servia para nada. Qual seria o motivo dessa obstinação, agora repetida?
Julgo que o meu intuito, embora indeciso, era reaver uma personalidade
que se diluíra em meio abjeto. Exigindo o frasco inútil, esforçava-me
por eliminar do espírito vestígios do horrível porão, onde supus
enlouquecer. As esteiras imundas, o refeitório ignóbil, pessoas
transformadas em animais selvagens, morrendo à toa, justificavam segunda
impertinência. Não se tratava só de molestar uma figura desagradável.
Junto à mesa, olhando o telegrama, aparecia-me a avidez de reentrar
enfim na humanidade. Lembro-me de, naquele instante, me haver
considerado trapaceiro e mesquinho. Prevalecia-me da situação para dizer
palavras insensatas na véspera, e isto de algum modo significava um
procedimento covarde. Senti que aquela gente – soldados e guardas
ébrios, insensíveis, obtusos – já não me causaria mal: o telegrama tinha
pouco mais ou menos o valor de uma carta de alforria. Havia nessa
reflexão força bastante para fechar-me a boca. Não me calei. E o moço da
secretaria, negando sempre, começou a perturbar-se. De repente saiu.
Dispunha-me a sair também, avizinhava-me da porta, quando ele entrou de
novo, e me estendeu a carteira:
- É esta?
Recebi-a, tirei do bolso o porta-níqueis, desafivelei o cinto, fui colocar tudo sobre a mesa, conferi os monogramas:
- Está aí, doutor. O ladrão veio trazê-la. E o doutor a dizer que aqui não se furta. Engraçado.
Recolhi os três objetos, rindo alto. Mordia os beiços para reprimir a manifestação ruidosa, e não me continha:
- Aqui não se furta. Adeus, doutor. Muito obrigado.
O médico levantou-se, acompanhou-me até a
cancela do curral. Pela primeira vez achava-me vigiado por um sujeito
de importância, mas isto de nenhum modo atenuou as humilhações
anteriores. Naquele momento, com a viagem fixa para o dia seguinte,
inclinava-me a dispensar a cortesia inopinada. O homem tencionava
provavelmente, julguei, abrandar-me o conceito motivado pela cena
desairosa à administração. Ao sair, espantava-me de ele não haver dito
uma palavra de censura. E mais me surpreendia o desazado comportamento
do velhaco: repelira a acusação frágil, depois se embrulhara, perdera os
estribos e condenara-se estupidamente. Isso corroborava o meu juízo a
respeito dos ladrões: gente vaidosa e potoqueira. Mas aquele na verdade
era inferior aos outros. Descuidista, imaginei.
No pátio branco, as árvores
enfileiradas, marciais, despojavam-se das folhas amarelas, que voavam
lentas na aragem branda. Havia no céu um desperdício de tintas. O
negrume ferruginoso dos montes próximos ganhava tons dourados. E a
distância, verdes e finas, as piteiras imergiam num banho luminoso.
Seriam talvez seis horas.
- Que beleza, doutor! Que maravilha!
Chegávamos à cancela. E experimentei de
chofre a necessidade imperiosa de expandir-me numa clara ameaça. A
desarrazoada tentação era tão forte que naquele instante não me ocorreu
nenhuma idéia de perigo.
- Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os senhores me deram.
- Pagar como? exclamou a personagem.
- Contando lá fora o que existe na ilha Grande.
- Contando?
- Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel.
O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:
- O senhor é jornalista?
- Não senhor. Faço livros. Vou fazer um
sobre a Colônia Correcional. Duzentas páginas ou mais. Os senhores me
deram assunto magnífico. Uma história curiosa, sem dúvida.
O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante cheio de sombras. Deu-me as costas e saiu resmungando:
- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.
IN: RAMOS, Graciliano. Mamórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2011, p.512-516.
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